Lábios da Sabedoria

Portal do Aluno

Magia Africana e Práticas de Feitiçaria Contemporânea

Entre forças invisíveis e estratégias de sobrevivência

Nas sociedades africanas — e em muitas das tradições que delas descendem — o mundo não termina naquilo que os olhos veem. O visível e o invisível são camadas de uma mesma realidade, interligadas por forças, entidades e intenções. Nesse contexto, magia e feitiçaria não são aberrações ou desvios, mas formas legítimas de atuação no mundo. São ferramentas de cura, proteção, poder e justiça. São também caminhos ambíguos, por vezes temidos, por vezes reverenciados, quase sempre mal compreendidos.

Ao contrário das religiões estruturadas que delimitam dogmas e ortodoxias, a magia africana é fluida, experimental, popular. Ela se organiza em torno de práticas concretas e saberes ancestrais transmitidos oralmente, enraizados em cosmologias que não separam espírito e corpo, natureza e cultura, doença e maldição. É um mundo onde tudo está interligado: uma palavra pode adoecer, um objeto pode proteger, um nome pode ser arma, uma planta pode ser portal.

Magia, feitiçaria e religião: fronteiras porosas

É comum, na visão ocidental, tentar classificar essas práticas como “magia negra”, “superstição” ou “bruxaria”. Mas isso diz mais sobre os limites da linguagem europeia do que sobre as tradições africanas em si. Em muitos contextos africanos, não há uma separação clara entre religião, medicina e magia. O mesmo ritual pode servir para curar, punir ou restaurar a harmonia. O mesmo curandeiro pode ser visto como santo por uns e feiticeiro perigoso por outros.

Essas práticas não são homogêneas. Elas variam de região para região, de povo para povo, e até mesmo entre aldeias vizinhas. No entanto, algumas figuras se repetem com diferentes nomes e funções:

Agentes do espiritual: quem são os praticantes

  • Nganga (África Central): figura chave nas tradições do Congo e da diáspora, o nganga é um mestre das forças espirituais ligadas aos nkisi (objetos sagrados que abrigam espíritos ou energias específicas). Atua tanto como curandeiro quanto como executor de trabalhos espirituais complexos — inclusive feitiços.

  • Sangoma e Inyanga (África Austral): enquanto os sangomas se especializam na comunicação com ancestrais, sonhos e espíritos, os inyangas são mestres em fitoterapia, usando o poder das plantas para tratar desequilíbrios espirituais e físicos.

  • Babalawô e adivinhos (África Ocidental): operadores do sistema de Ifá, interpretam os caminhos do destino e orientam ações corretivas por meio de oferendas e rituais. São vistos como sábios, mas também podem executar ações místicas de defesa ou ataque.

  • Feiticeiros (em diversas línguas locais): muitas vezes diferenciados dos curandeiros, são acusados de praticar magia destrutiva — controlar espíritos malignos, lançar maldições ou provocar doenças. Em algumas regiões, essa figura se torna alvo de perseguições e acusações sociais graves.

O medo da feitiçaria: tensões sociais e perseguições

Em grande parte da África contemporânea, a crença na feitiçaria é real e operativa. Doenças sem explicação, falências repentinas, mortes inesperadas ou conflitos familiares são, frequentemente, atribuídos à ação de forças ocultas. Isso gera um clima constante de suspeita, onde qualquer infortúnio pode ser interpretado como um ataque espiritual.

Essa dinâmica alimenta tragédias:

  • Idosos e mulheres vulneráveis acusados de “voar à noite” ou “sugar vitalidade” são perseguidos.

  • Crianças rotuladas como “bruxas” são abandonadas por famílias em crise ou exploradas por falsos pastores.

  • Curandeiros tradicionais são hostilizados por igrejas neopentecostais, que os denunciam como “agentes do demônio”.

Esse tipo de conflito, muitas vezes, é um reflexo das tensões entre a tradição e a modernidade, entre o saber local e os discursos religiosos importados.

Magia no século XXI: reinvenções e resistências

Engana-se quem pensa que a magia africana ficou presa ao passado. Ela se adapta, se reinventa e continua operando nas cidades, mercados, terreiros e até nos bastidores do poder.

  • Mercados de fetiches, como o de Lomé (Togo), oferecem uma vasta gama de ingredientes mágicos: chifres, peles, dentes, ossos, plantas e amuletos preparados sob encomenda.

  • Feitiçaria digital: ngangas e adivinhos agora atendem por WhatsApp, recebem pagamentos por transferência bancária e operam “trabalhos” à distância, a partir de fotos ou dados pessoais.

  • Magia e política: não é raro ouvir relatos de líderes africanos — e até figuras públicas da diáspora — que recorrem a magos ou feiticeiros para garantir vitórias eleitorais, proteção espiritual ou vingança contra rivais.

  • Sincretismos contemporâneos: em vários contextos, as práticas mágicas se fundem com elementos cristãos ou islâmicos, criando uma religiosidade híbrida, estratégica e profundamente popular.

Heranças e diásporas: a magia africana no mundo

Com a diáspora africana, essas práticas viajaram e se transformaram. No Brasil, no Caribe e nas Américas, surgiram novos arranjos culturais que preservam a lógica espiritual africana:

  • Candomblé e Umbanda usam fundamentos mágicos para manipular axés, firmar proteções e desfazer feitiços.

  • Palo Monte em Cuba, Vodou no Haiti, Obeah na Jamaica e Hoodoo nos EUA são sistemas onde a magia é uma extensão direta das tradições ancestrais.

  • A Encantaria Maranhense e a Jurema Sagrada carregam esse mesmo espírito de resistência simbólica e poder ritual.

Considerações finais

A magia africana, em suas múltiplas expressões, é um sistema de conhecimento complexo. É filosofia viva, espiritualidade em ação, e também resistência cultural diante da colonização, do cristianismo imperial, da racionalidade tecnocrática. Onde o mundo moderno vê superstição, os praticantes veem relações: entre os vivos e os mortos, entre o visível e o invisível, entre o destino e a liberdade.

Essas práticas não sobrevivem por acaso. Elas continuam porque funcionam dentro de um universo simbólico coerente — um universo onde o espiritual não é apenas crença, mas uma força real que move a existência.